1ª Parte do Grande Expediente
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05/08/2015
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Discurso
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54ª Sessão
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Senhor Presidente, senhores vereadores, senhoras e
senhores, o que nos faz subir a esta é o tema “O Estado cometeu crime de
vilipêndio”, e da forma mais debochada e fria possível.
No dia 31 de julho, no portal G1, veiculou-se a
notícia seguinte:
“Mãe troca filho recém-nascido por 100 gramas de
crack em Jaru, Roraima. Um bebê de apenas cinco dias de vida pode ter sido
trocado por 100 gramas de crack pela própria mãe, em Jaru, município a 290 km
de Porto Velho.”
Muito bem. Uma notícia chocante, triste, mas que a
gente tem, infelizmente, que compreender como se fosse um fato já até certo
ponto corriqueiro, em razão de um efeito de drogas. Trata-se de uma pessoa já
enfraquecida, enlouquecida, embora mãe, que comete esse ato de desatino.
No dia 3 de agosto, nós temos outra notícia:
“Mãe envenena bebê para chamar atenção de ex e
confessa crime na Bahia. Uma mulher tentou matar a filha de 1 ano e 8 meses ao
introduzir veneno na mamadeira da criança para chamar atenção do
ex-companheiro, no município de Eunápolis, na região do extremo-sul da Bahia.”
Outro ato deplorável, de desatino, mas para o qual
a gente procura explicação, se é que se pode dar uma explicação, um caso de
ciúme doentio. Trata-se de doença.
Mas o que nos causou espécie nesses últimos dias, o
que pasmou a sociedade e que a mim, pessoalmente, chocou como nunca... Olhem
que eu tenho 68 anos de vida e nesses 68 anos de vida eu nunca vi uma coisa tão
atroz como o que eu vou passar a relatar. O que é, certamente, do conhecimento
dos senhores, mas que precisa ser registrado por esta Casa.
No dia 29 de julho, no portal G1, mais uma vez, sai
a seguinte manchete:
“Agente da SuperVia autoriza maquinista e trem
passa sobre corpo em Madureira.
Homem morreu após ser atropelado ao acessar os
trilhos indevidamente. Agente decide não esperar a remoção e permite que os
vagões da composição passem sobre ele.
Mas não para aí. Poderia ter sido um erro do
maquinista, mas, no dia 30, na mesma fonte, diz:
“SuperVia diz que trem tinha ‘altura suficiente’
para passar sobre corpo”.
Então, a concessionária SuperVia assumiu a atitude
que era supostamente do indivíduo que estava dirigindo a composição, e diz:
“A concessionária alegou que havia cerca de seis
mil passageiros em três trens lotados aguardando para seguir viagem”.
Quando você assiste àquela cena, que passou várias
vezes na televisão, você diz que não é verdade, você não acredita, você pensa
que está sonhando. Não é possível uma pessoa, vendo lá um corpo “supostamente
morto”, dizer: “Pode vir, pode vir”, e lentamente... Você não acredita! Diz: “É
brincadeira, isso não está acontecendo”. Você se belisca. Mas a cena continua,
e alguém vai relatando, e a composição passa por cima de um corpo “supostamente
já falecido”. É um corpo já falecido? É uma pessoa que já morreu?
“'Foi uma atrocidade’, diz mãe de homem atropelado
na SuperVia.
Adílio dos Santos trabalhava como vendedor de balas
e doces nos trens”.
Aí a gente começa a entender.
“Ex-presidiário, ele estava ‘começando a se
levantar’, afirma mãe.”
Uma pessoa que já foi atropelada pela vida,
atropelada pelo trem, e atropelada de uma maneira cruel, fria pelo Estado, pela
sociedade. Como é que vamos reclamar, querer que os próprios bandidos tenham
bom senso, que não agridam a sociedade, se nós estamos assistindo o próprio
Estado agredindo a sociedade de maneira cruel.
Outra manchete, essa já do jornal O Dia do dia 31
de julho:
“Laudo vai dizer se o segundo trem foi o
responsável pela morte da vítima”.
Então, não se sabe se foi agressão a um cadáver ou
a um ser humano vivo.
Adílio foi atropelado pela vida, pela pobreza, pela
miséria, pela história, pelas diferenças socioeconômicas, pela concentração de
renda, pela maldade da sociedade, de um Estado cruel, de um modelo econômico
perverso. Atropelado por um trem, acidentalmente, e vilipendiado por um Estado
frio e cruel. Isso não pode ficar parado somente porque ele era um vendedor de
balas. Se fosse filho de um artista de televisão, se fosse ligado a alguém de
poder econômico, certamente o trem não passaria por cima do seu corpo, mas era
um vendedor de balas. Ali se estava agredindo a pobreza, estava-se
desrespeitando, mais uma vez, a miséria. É pisar sobre a miséria do povo.
No momento em que a composição passava por cima do
corpo de Adílio, tínhamos a sensação de que o Estado e a sociedade desprezavam,
na sua totalidade, aquele pobre homem. Era como se as instituições atropelassem
o já atropelado e vitimado homem humilde. Era como se o Poder Executivo, o
Poder Legislativo, o Poder Judiciário, a Igreja, a OAB, a sociedade como um
todo, todos nós, fossemos coniventes e, num ato de humilhação e de desprezo,
decidíssemos, a uma só voz, perguntar àquela pessoa: “Por que você ousou ser
atropelado aqui e nessa hora? Você é um imbecil! Não sabe onde
morrer, rapaz...”
Era como se a vítima do atropelamento fosse a
única pessoa culpada pelo sinistro. Lembrei-me então da canção de Chico
Buarque, dos anos 70, chamada “Construção”, em que apresentava em um dos seus
belos versos o seguinte: “Morreu na contramão atrapalhando o tráfego”. Quem é
do meu tempo sabe disso e quem não é deve ter ouvido essa linda canção.
Senhoras e senhores, onde queremos chegar? A
atitude da concessionária banaliza os valores éticos e morais, sepulta o
respeito aos vivos e aos mortos e deve ser repudiada pelas pessoas de bem. Não
pode cair no esquecimento.
O Estado do Rio de Janeiro é também responsável
pelas suas concessionárias. Para minha surpresa, depois daquela cena triste,
repudiante, do trem passando por cima daquela pessoa que não se sabe se é um
cadáver ou se ainda estava viva, vem o secretário, simpaticíssimo, bem falante
– o Senhor Osório – e diz assim: “É um ato desumano!”
Aliás, acho que no Rio de Janeiro não há ninguém
tão bem articulado, nos últimos tempos, como o Senhor Osório, para transformar
a coisa ruim em coisa boa. Parece até que ele é o entrevistador e não quem tem que
responder. Quando alguém lhe faz uma pergunta, ele acaba invertendo a situação
e tornando-se praticamente uma vítima.
Entretanto, Senhor Osório, não se trata de
desumanidade, não: é crime mesmo! O que houve foi um crime de vilipêndio.
Vilipêndio a cadáver é uma figura de crime contemplado no Código Penal
Brasileiro: Art. 212. Vilipendiar cadáver ou suas cinzas: Pena – detenção, de 1
(um) a 3 (três) anos, e multa.
O Código pune o ato de vilipendiar, isto é,
aviltar, profanar, desrespeitar, ultrajar o cadáver ou ter ação.
Portanto, o Estado do Rio de Janeiro tem que ir
muito mais do que simplesmente dizer que o ato foi desumano. Foi um crime que
tem que ser apurado e para o qual a sociedade tem que ter uma resposta rápida,
se é que é possível dar uma resposta à banalização que foi feita naqueles dias.
Muito obrigado, Senhor Presidente.