O Exame Nacional do Ensino Médio, o Enem, de 2011, traz a público, mais uma vez, uma série de contradições, a começar pelo resultado, que privilegia as escolas particulares e coloca em situação constrangedora as escolas públicas brasileiras. E uma comparação, inevitável, entre as duas realidades logo se impõe.
É exatamente nesse momento que se deve tomar o máximo cuidado para não se incorrer em erros de avaliação, pois não há como comparar grandes escolas privadas com as redes públicas de Educação.
É comum a população, e mesmo a imprensa, referirem-se ao conjunto das escolas particulares como rede privada de ensino. Ora, não existe “rede” particular. As escolas particulares são unitárias, autônomas, existem por empreendimento pessoal ou de grupos, ou pertencem a instituições religiosas. E são, antes de tudo, negócio, investimento, sem nenhum aspecto pejorativo aqui. Em raras exceções, uma instituição particular de ensino mantém uma ou duas unidades em bairros diferentes de onde se localiza a sede. Nada que se compare a uma rede pública de Educação, como a municipal do Rio, com 1.065 unidades escolares, ou a rede estadual, com 1.457 escolas.
É necessário, também, esclarecer que as escolas particulares não constituem um ente único, uniforme. Não são sequer similares. Nesse imenso conjunto, há de tudo também. Das grandes escolas de excelente desempenho, que talvez não cheguem a 10%, passando por boas escolas, medianas escolas, até escolas sofríveis, de péssimo desempenho, como o das piores escolas públicas. Sem falar nas escolas do tipo “pagou passou”, que mais se assemelham a caça-níqueis do que a instituições de ensino.
Na grande maioria das escolas particulares, os professores recebem o piso salarial, que significa: para as professoras da educação infantil ao 5º ano do ensino fundamental, R$ 979,77; para os professores do 6º ano do ensino fundamental ao 3º ano do ensino médio, o valor pago é de R$ 12,48, por hora aula, e se a carga horária cumprida é de 25 aulas semanais, o total é de R$ 1.404,00, e, se o regime for de 40 horas, chegará a R$ 2.246,40. Isto é o que ganha a maioria esmagadora dos professores das escolas particulares, pois a maior parte das escolas privadas paga, somente, o piso salarial. Há, portanto, uma diferença brutal entre os salários das grandes escolas e os praticados pelas demais, a grande maioria.
Esta é a verdade da “rede” particular de ensino, que se apropria do excelente conceito alcançado pelo desempenho das poucas grandes escolas, estendendo-o para todo o conjunto, ao contrário do que, perversamente, ocorre com as escolas públicas, que, a despeito do bom desempenho que possam vir a alcançar, e não são poucas, carregam um estigma por serem públicas.
As escolas particulares são altamente seletivas, excludentes por princípio, e realizam exames rigorosos de seleção para o ingresso de novos alunos. Em matéria assinada por Luís Bulcão, publicada em 13/9 pelo portal Terra, a supervisora pedagógica do Colégio São Bento, Profª Maria Elisa Penna Firme Pedrosa, afirma: “O São Bento só aceita alunos até o início do ensino médio. Para entrar, os candidatos passam por provas de matemática, português, história, geografia e ciências. E a maioria não é selecionada.” Verdade. A maioria é eliminada nesses processos de seleção. Muitas escolas particulares também não aceitam alunos portadores de deficiência e o São Bento não aceita meninas. Mais excludente, impossível.
As redes públicas, no entanto, são inclusivas e não fecham suas portas a quem quer que seja, independentemente dos problemas sociais, físicos, psicológicos, familiares que o aluno possa trazer com ele.
As escolas particulares de bom nível, exigem, cada vez mais, a qualificação de seus professores. No São Bento, prossegue a Profª Maria Elisa, "quase todos os professores têm mestrado e doutorado". E, certamente, são incentivados para isso.
Nas redes públicas, embora o Estatuto do Servidor assegure ao professor o direito à licença com vencimentos para estudar, governadores e prefeitos rotineiramente indeferem a maioria das solicitações de seus professores, só lhes dando a alternativa da licença sem vencimentos. Mas, sem salário, como poderá o professor se manter apenas estudando? E, ainda assim, o professor interessado em se qualificar, mesmo sem salário, dependerá de concordância da chefia imediata e de autorização do chefe do poder executivo, que poderão alegar falta de professor para negar-lhe esse direito. A despeito dessas dificuldades, na rede municipal do Rio, de 15 a 20 % de seus professores detêm esses títulos.
Nas escolas particulares de muito bom nível, os salários ultrapassam R$ 3.000,00, pois as mensalidades pagas pelos pais são muito altas. No caso do São Bento, segundo sua supervisora pedagógica, os salários dos professores da 1ª à 5ª série do ensino fundamental estão na faixa de R$ 4.000,00, com carga horária de 25 horas semanais. Afinal, magistério não é sacerdócio. E as grandes escolas particulares, que querem se manter competitivas no mercado, sabem bem disso.
Nas redes públicas de todo o país, os salários são simplesmente aviltantes. No caso da rede estadual do Rio de Janeiro, o professor em final de carreira, com mestrado ou doutorado, é de R$ 1.511,00. Apenas nos governos de Leonel Brizola, houve um empenho na implantação do Plano de Carreira, que partia de três salários mínimos e meio (R$ 1.907,50 em valores atuais), dividido em nove níveis, com 12% de acréscimo entre os níveis, o que significaria, hoje, um salário de R$ 4.722,90, no nível 9. O salário inicial de um professor com curso superior (nível 3) seria de R$ 2.392,77 em valores de hoje. Some-se a isso o valor dos triênios, 5% a cada três anos, com o máximo de 60%. Portanto, início e final de carreira dignos, similar ao que ocorre nas grandes escolas particulares.
Mas os governantes são insensíveis à realidade enfrentada por seus professores, a ponto de deixarem as greves por melhores salários se estenderem por meses, se exaurirem por si mesmas, como as do Rio, Ceará e Minas Gerais, que ultrapassa 100 dias, sem que os governadores demonstrem qualquer constrangimento por isso.
A indiferença é geral, quase um desprezo, e independe do partido que esteja no governo ou se o governante é mais ou menos progressista. Sergio Cabral, no Rio, Antônio Anastasia, em Minas Gerais, e Cid Gomes, no Ceará Beto Richa no Paraná, são alguns dos exemplos mais recentes do descaso com a situação da educação pública em seus estados. Como se não bastasse, essas autoridades sentem-se muito à vontade para ofender professores e colocar suas polícias militares em seu encalço, com balas de borracha e gás de pimenta. Sem falar em José Serra que, por diversas vezes, fez correr o sangue dos professores estaduais pelas ruas de São Paulo.
Nas escolas particulares, em geral, aluno e família assumem um código de princípios e de conduta, com punições que podem chegar a suspensão e exclusão dos quadros da escola, como parâmetro para coibir qualquer problema de indisciplina, sem intervenção externa. Diz, ainda, a supervisora do Colégio São Bento: “A disciplina no colégio envolve assiduidade, pontualidade e respeito aos professores e colegas. O aluno que se atrasar mais de três vezes é suspenso. Agressão física ou verbal a professores, colegas e funcionários não são toleradas.”
Nas redes públicas, a sensação generalizada é de que o Estatuto da Criança e do Adolescente e o Conselho Tutelar não vieram para ajudar diretores e professores na luta por uma escola melhor, em um contexto de violência cada vez maior. Os alunos não podem ser impedidos de entrar, independentemente da hora em que chegam à escola, ou se estão sem uniforme ou material escolar, mesmo tendo recebido tudo novo no início do ano. Não podem ser suspensos nem retirados de sala de aula. Professores e gestores públicos, que vêm sendo progressivamente vítimas de desrespeito, agressões e ameaças de morte, até, percebem-se desautorizados por esses institutos jurídicos, pois uma palavra mais dura de um professor para seu aluno, é interpretada como desrespeito e pode vir a significar sérios problemas para esse profissional. A percepção de desamparo, vivenciada pelos professores das redes públicas em seu cotidiano escolar, tem gerado um grande número de afastamentos por problemas de saúde, por abandono e por exoneração do serviço público.
Nas escolas particulares, há a figura do porteiro, do inspetor, do coordenador de turno e de uma equipe de apoio pedagógico.
Nas redes públicas, esses profissionais foram extintos e, na falta de professores, os próprios diretores são obrigados a interromper sua função e assumir a regência dessas turmas.
Nas escolas particulares preocupadas com sua posição no mercado, quando o aluno apresenta problemas de relacionamento, comportamento, aprendizagem, os pais são chamados e instados a agir, antes que o quadro se agrave. E, caso não se verifique melhora substancial, o aluno é “convidado” a se retirar da escola. Ou seja, não se perde tempo com quem não quer avançar.
Nas redes públicas, as famílias não se sentem responsáveis, literalmente lavam as mãos, repassando todo o ônus da educação de seus filhos para as escolas e seus professores, e, frequentemente, não os veem como parceiros, mas como antagonistas de seus filhos.
Nas boas escolas particulares, quando a família de um aluno está em crise, dificilmente os problemas chegam à sala de aula, pois os pais providenciam acompanhamento psicológico para o filho, a fim de reduzir danos, além de, muitas vezes, a escola também disponibilizar um atendimento especial a esse aluno.
Nas redes públicas, quando conflitos familiares ocorrem, dificilmente as famílias, que na maioria das vezes significa mãe e irmãos de pais diferentes, ou mãe no trabalho e um adolescente responsável por irmãos menores, ou mães muito jovens e avós de 35 anos, encontram respaldo profissional nas escolas. No máximo, são encaminhadas a atendimento no posto de saúde, sem continuidade ou conexão com a realidade escolar.
Nas escolas particulares de melhor classificação, os pais, em sua quase totalidade, concluíram o curso universitário e demonstram real interesse pelo desempenho escolar de seus filhos, proporcionando-lhes, além de uma excelente escola, viagens ao exterior, computadores de última geração, uma boa biblioteca para o desenvolvimento do hábito da leitura, cursos de outros idiomas, atividades de esportes e artes, ambientes sociais e culturais que lhes acrescentam experiências importantes para o futuro.
Nas redes públicas, os responsáveis cumpriram, em sua grande maioria, menos do que o mínimo de 11 anos de escolaridade, seus filhos quase sempre não dispõem de um local adequado para estudar e têm que dividir o pouco que possuem com os irmãos. Nas áreas conflagradas, as crianças e jovens têm que conviver com o assédio do tráfico, com a truculência policial e com ameaças e tiroteios que as levam, muitas vezes ainda bem pequenas, a desenvolverem síndrome do pânico.
Nas grandes escolas particulares, as famílias pagam mensalidades altas e compram todo o material escolar, inclusive uniforme, além de alimentação, em caso de horário integral. Cada atividade fora da grade curricular, como outra língua estrangeira, balé, informática, aulas passeio, com visitas a parques e museus, têm um custo adicional.
Nas redes públicas, tudo é oferecido pelo governo e nada pode ser cobrado. Hoje sequer são permitidas a existência da “caixa escolar”, ou a arrecadação de recursos extras por meio de rifa ou venda de doces e salgadinhos levados por mães e professores para as comemorações do calendário escolar.
Nas escolas particulares, as turmas têm em torno de 30 alunos, as salas são amplas, bonitas e confortáveis e dispõem, a maioria, de recursos tecnológicos e de refrigeração.
Nas escolas públicas, as salas são superlotadas, muitas vezes ultrapassando 50 alunos, sem qualquer conforto, mal cuidadas e extremamente quentes. Só muito recentemente é que alguns governos estaduais e prefeituras iniciaram os processos - lentos - de fornecimento de computadores individuais para alunos e professores, além de instalação de aparelhos de ar refrigerado nas escolas. Contudo, por incrível que pareça, sem a aprovação unânime da sociedade para esses gastos, considerados por muita gente “supérfluos”.
Nas escolas particulares de alto nível, alunos em recuperação e índices de reprovação são ínfimos, pois muitas funcionam em horário integral ou oferecem monitoria, adotando, na prática, a avaliação continuada. Como para essas escolas, reprovação é sinônimo de fracasso da família, da instituição e, principalmente, do aluno, as famílias providenciam professores particulares para seus filhos, aos primeiros sinais de dificuldade em qualquer disciplina, porque o investimento que fazem com a educação de seus filhos é muito alto. No caso do São Bento, a mensalidade escolar é de R$ 2.000,00, maior do que a de um curso de MBA da Fundação Getúlio Vargas.
Nas redes públicas, o horário integral ainda é raro, embora todos afirmem e reafirmem ser fundamental. E, incrivelmente, reprovação virou sinônimo de rigor pedagógico, mas sem que quase nada seja oferecido ao aluno para socorrê-lo em suas dificuldades. E, a partir de certo momento, um fato terrível ocorreu no Rio de Janeiro: os vereadores, em luta político-eleitoral contra o então prefeito Cesar Maia, e movidos pela falta de respostas para os questionamentos da sociedade com relação ao baixo desempenho das escolas municipais, com o apoio da imprensa e até de professores, receosos de perderem o último trunfo em sua relação extremamente desgastante com alunos sem limites, aliaram-se todos nas ações de convencimento da população de que a avaliação continuada, que mal começara a ser aplicada, deveria ser extinta e que a escola pública teria que reprovar.
O que se viu a seguir foi estarrecedor. Em 2008, no auge da campanha eleitoral para prefeito do Rio, todos os candidatos assumiram o compromisso de que, em sua gestão, caso fossem eleitos, não haveria mais aprovação automática, como pejorativamente passaram a se referir, sem nenhum conhecimento técnico, à avaliação continuada, e que a reprovação estava garantida. Na hora da prestação de contas sobre o fracasso escolar da rede sob sua responsabilidade, os políticos decidiram, pasmem, penalizar a vítima (?!!!). Até o outrora progressista Fernando Gabeira comprou e vendeu essa crueldade contra as crianças das escolas públicas. E, pior, as mães, oriundas de gerações de excluídos, não conseguiram perceber a perversidade contida nessa pregação e passaram também a acreditar que a reprovação é necessária, em vez de exigirem do prefeito eleito Eduardo Paes, como direito de cidadania, um melhor atendimento a seus filhos, com as correções devidas no processo de aplicação da avaliação continuada. Pobres crianças.
As escolas particulares se mantiveram como instituições de Ensino.
As redes públicas tornaram-se redes de Educação, um conceito muito mais amplo e complexo do que ensino, mas que em proporções gigantescas, sem os devidos recursos financeiros, materiais e humanos, e com os graves problemas sociais nos quais os alunos estão inseridos, é quase impossível, sem um esforço sobre-humano de governos e sociedade, chegar a bom termo.
A sociedade hoje, em coro, afirma que horário integral é a solução. Mas há 27 anos, por motivação política intestina, segmentos dessa mesma sociedade foram coniventes com o massacre do último grande projeto de educação pública deste país, o Programa Especial de Educação e seus 500 Centros Integrados de Educação Pública, os Cieps, idealizados pelo Prof. Darcy Ribeiro e construídos nos dois governos de Leonel Brizola, que, às duras críticas, principalmente as referentes aos custos do programa, respondia com serenidade: “prefiro pagar mais por um aluno na escola do que por um preso na penitenciária”. Na época, o Estado gastava, mensalmente, bem mais com um prisioneiro do que com uma criança na escola pública. E os resultados estão aí.
É fundamental que todos os três níveis de governo façam um verdadeiro esforço de guerra para tirar a educação pública dos índices lamentáveis em que se encontra em nosso país. Mas a responsabilidade maior está nas mãos dos prefeitos, pois a eles cabem a educação infantil (de zero a seis anos) e o ensino fundamental (do 1º ao 9º ano). Ou seja: a base de toda a vida escolar de seus futuros cidadãos.
A sociedade precisa sair de sua apatia e exigir a aplicação correta desses recursos, além do agravamento das penas para os crimes de desvio de verbas destinadas à Educação. Não é mais possível assistirmos matérias em telejornais e programas semanais mostrando escolas sem telhado e crianças caminhando por quilômetros, desde a madrugada, para chegar a um arremedo de sala de aula, nos rincões mais distantes do Brasil. Não há nada que justifique aberrações como essas. Os prefeitos desses municípios deveriam ser presos porque verbas há para atender essa demanda.
Prefeituras e governos estaduais precisam ser obrigados a aplicar o percentual - mínimo - de 25% do orçamento em Educação. O governo federal têm feito grandes repasses a estados e municípios com essa finalidade, além dos recursos do Fundo Nacional do Desenvolvimento do Ensino Básico – Fundeb.
Municípios geridos de maneira séria, principalmente no interior do país, têm aplicado mais do que o percentual obrigatório, estabelecendo com isso, 14 e até 15 salários a seus professores, em valores dignos. Se a população estiver atenta, e não houver desvio de recursos, os resultados positivos logo começarão a aparecer. Não há mistério.
Em matéria do portal R7, assinada por Sérgio Vieira e publicada em 12/9, um ex-aluno do Colégio São Bento cita Dom Tadeu, antigo reitor falecido em 2010, para justificar o sucesso alcançado nacionalmente pela tradicional escola: “O segredo da gente é continuar fazendo o que os outros colégios não fazem: ensinar”.
Das experiências do ex-governador Leonel Brizola, desde as 137 escolas construídas por ele em Porto Alegre, na década de 1950, quando prefeito da capital gaúcha, passando pelas 6.302 escolinhas de madeira, as brizoletas, construídas no interior do Rio Grande do Sul, entre 1959 e 1963, quando governador do Estado, aos 500 Cieps do Programa Especial de Educação, dos anos 1980, no Rio de Janeiro - em sua obsessão da vida inteira por educação pública de qualidade - à convicção de Dom Tadeu para as razões do sucesso consolidado do Colégio São Bento, fica a certeza de tudo o que é imprescindível para que uma instituição escolar, pública ou privada, seja muito bem-sucedida. Afinal, milagre não existe.
José Carlos Sucupira