quinta-feira, 19 de maio de 2011

QUAL A INTENÇÃO DO MEC COM O "NÓS PEGA"?

Uso de linguagem popular é orientação do MEC . Entenda a polêmica do livro com “nós pega”


Maria Erlaine Mendes da Silva fala “nós pega”, mas sabe que está em desacordo com a norma culta da língua portuguesa. Aprendeu na escola, onde cursa o 7º ano do Ensino Fundamental, em curso de Educação de Jovens e Adultos (EJA). A aluna não gostou de saber que o livro adotado na escola onde estuda, Por uma Vida Melhor, da coleção “Viver, Aprender”, aceita que não seja necessariamente usada a regra na fala. Na escola, professores também reclamam. Mas a Secretaria Estadual de Educação informou que, por enquanto, não vai se pronunciar sobre o assunto.

Erlaine tem 22 anos e ficou oito deles sem estudar. Parou aos 16 quando deixou o Ceará em direção ao Rio de Janeiro, em busca de emprego. Trabalhou todo esse tempo como doméstica e agora tenta completar os estudos na esperança de conseguir um emprego melhor. “Tinha de dormir no emprego. Cheguei a pensar que abandonaria os estudos de vez”, conta a doméstica. “Meus patrões atuais incentivaram. Dizem que não posso ser doméstica a vida inteira”, conta. Assim como outros colegas, Erlaine diz que prefere ser corrigida na sala de aula a sair por aí “falando errado”. “Não tenho vergonha de ser corrigida. É obrigação do professor ensinar o certo”. Sobre a aceitação – proposta pelo livro – da forma popular na sala de aula, a estudante foi categórica: “Já fui corrigida pelos meus patrões quando falei errado. Fiquei com vergonha. Estou na escola para não precisar passar por isso outra vez”, afirmou.

Doméstica Cleonice Vieira da Silva diz já se sentiu mal por ser chamada a atenção depois de escrever um bilhete de maneira "errada"

Cleonice Vieira da Silva tem 56 anos e acredita que a idade não lhe permite buscar um emprego melhor. É empregada doméstica há mais de três décadas. “Estudo porque é um objetivo de vida. A pessoa que sabe das coisas se sente mais segura”, contou. Ouvinte assídua de rádio, ela soube da polêmica em um dos programas que acompanha. Mas diz que não tinha conhecimento de que o livro em questão era o que carregava na mochila. “A gente ainda não estudou o capítulo. Mas não quero aprender errado, não. Já levei bronca por anotar recados errados. Quero fazer tudo certinho”.

Um professor do curso de EJA na rede estadual do Rio que recebeu o livro para ministrar em sala de aula disse que ficou revoltado quando tomou conhecimento da polêmica. “Os alunos falam dessa forma. A maioria. Isso é um fato, e chega a ser lógico. Falam assim porque aprenderam assim. Mas eu tenho a obrigação de sinalizá-los sobre a norma culta”, diz o docente. “Não adianta a escola fazer concessão se o mercado de trabalho, se a vida, não faz”.

Autonomia para escolher livros

A Secretaria de Educação do Rio de Janeiro informou, por e-mail, que as escolas da rede que oferecem cursos para adultos têm autonomia para escolher os livros que o Ministério da Educação disponibiliza para o EJA. A secretaria também afirmou que faz um levantamento sobre os livros adotados – trabalho que ainda não foi concluído –, para que possa comentar o assunto. Por isso informa que por enquanto não tem como abordar a questão.

O iG confirmou que escolas estaduais das zonas norte a sul da cidade receberam exemplares. É o caso da Escola Estadual de Ensino Supletivo Berlin, em Olaria, no subúrbio carioca, e da Escola Estadual Marília de Dirceu, em Ipanema, um dos endereços mais nobres da cidade.

“Sou zoado”

Severino Ramos Gomes da Silva, de 15 anos, está no 6º ano do Ensino Fundamental. No curso supletivo. Ele precisou interromper os estudos depois que a mãe, viúva, abandonou a Paraíba para tentar a sorte no Rio de Janeiro. Na capital carioca deixou no nome de batismo de lado. Prefere ser chamado de “Diego”. Trabalhou um tempo em lanchonete, mas agora está desempregado. “Sei que o salário mínimo é de R$ 545. Mas eu quero receber R$ 1 mil. Preciso estudar”, falou. “Para fazer qualquer coisa nessa vida tem que ter o segundo grau”, disse, em referência à conclusão do ensino médio.

“Diego” também fala “nós vai” e “a gente sabemos”. Justifica a oralidade alegando ser filho de analfabeta e de família humilde. Morador da favela da Rocinha, o aluno contou que já foi corrigido dentro de sala de aula e que ficou constrangido. Mas ressaltou que o “mico” não o fez querer falar diferente das “pessoas que sabem das coisas”. “Fui corrigido algumas vezes e todo mundo na sala riu. Sou zoado, mas prefiro falar como os outros que sabem”.

Aos 33 anos, o marceneiro Antônio Ribeiro dos Santos chega pontualmente ao curso supletivo, às 19h, a fim de concluir o ensino fundamental. Está no 7º ano. Perguntado se deveria falar “nós pega o peixe” ou “nós pegamos o peixe”, pediu um tempo para pensar. Em menos de um minuto, ele respondeu. “Nós pegamos o peixe, não é?”.

Por ser um profissional autônomo “já encaminhado”, Antônio não pensa em fazer faculdade. “Sem estudo fica muito mais difícil. Já tive de assinar contrato em que não entendia um monte de coisa e precisei pedir que me explicassem. Não quero mais isso”, falou. “Fiz curso de radialista comunitário, porque gosto dessa profissão. Tenho de falar corretamente quando ligam o microfone, não é?”, perguntou, antes de seguir para a aula.

"No Brasil, a pessoa tem que ter estudos, senão fica tudo mais difícil", diz o marceneiro Antônio Ribeiro dos Santos

Uma coordenadora de curso supletivo na rede estadual manifestou descontentamento com a publicação. “O professor de português me chamou a atenção para o assunto. A sensação que tenho é a de que querem sempre nivelar o aluno da escola pública por baixo”. A professora, que trabalha na rede pública há 27 anos, reconhece que mesmo formados os alunos permanecem fiéis à forma popular, mas afirma que isso não é motivo para que um livro didático aceite novas regras. “Se desfazer de um vício de linguagem é muito difícil, porque quando saem da escola eles voltam a conviver no meio onde aprendem a falar ‘errado’. Porém, considero isso mais um motivo para que a escola sirva de parâmetro sobre o que aceita a norma culta”, conclui.

Adaptado

Um comentário:

  1. Realmente um absurdo. Mas chamou-me a atenção um fato. Creio que se pesquisarmos o EJA, veremos muitos alunos oriundos do norte ou nordeste do país. Penso que políticas públicas inclusivas nestes locais valorizariam seus habitantes, sem a necessidade de eles "tentarem a sorte".

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