segunda-feira, 30 de julho de 2012

Especulação imobiliária " ataca" os artistas no Rio.


Justiça determina desocupação da Bhering


Mais de 50 artistas que têm seus ateliês instalados na antiga fábrica de doces Bhering, no Santo Cristo, podem ser despejados do edifício em 30 dias. O prédio, que ficou conhecido como ponto de encontro e produção artística no Rio, foi levado a leilão e arrematado por R$ 3,2 milhões por uma incorporadora imobiliária, a Syn-Brasil Empreendimentos.
O leilão judicial, em duas etapas, ocorreu no ano passado para sanar um débito tributário de cerca de R$ 150 mil dos donos do edifício com o governo federal — mas o caso só veio à tona nesta semana, quando os artistas receberam os documentos pedindo que desocupassem o edifício.

Desde meados do ano passado a Bhering vem tentando cancelar a venda, alegando que já vinha pagando, em parcelas, sua dívida com a União. Em junho, porém, o Tribunal Federal Regional negou o pedido.

Em comunicado oficial enviado ao GLOBO anteontem, a Bhering afirmou que tem extratos para comprovar que, desde 2009, está dentro da lei que autoriza o parcelamento da dívida tributária. Segundo a nota da empresa, ao autorizar a realização do leilão, o tribunal "não intimou a Prefeitura do Rio de Janeiro e os locatários do imóvel, que são partes diretamente interessadas, ignorando formalidades indispensáveis ao processo". Ainda segundo a Bhering, o valor pelo qual o imóvel foi vendido é considerado "vil" — "cerca de dez vezes inferior às avaliações de mercado, ou R$ 32 milhões". No entanto, na ação que negou o pedido de anulação do leilão, a juíza Fernanda Duarte Lopes Lucas da Silva escreve que o preço pelo qual o prédio foi arrematado supera em 50% o valor de sua avaliação.

Para os artistas que há mais de dois anos ocupam o prédio de 20 mil metros quadrados, a notícia causou surpresa — eles não haviam sido informados sequer do leilão, em 2011. Muitos se reuniram anteontem, com advogados da Bhering e da incorporadora que adquiriu o imóvel, para entender a situação. Alguns já haviam recebido a ordem para desocupar o prédio, mas boa parte deve receber o documento nos próximos dias.

— São mais de 50 artistas e 20 outras pequenas empresas, como uma livraria e uma editora, que estão ali tentando entender o que acontece — diz o artista plástico Barrão, que tem ateliê no prédio há dois anos. — É um lugar que se consolidava como centro de produção de arte no Rio. Acho uma pena que isso esteja acontecendo, que não se tenha percebido que na Bhering há um movimento cultural espontâneo.

A fábrica já é incluída nos roteiros de arte propostos pela ArtRio, divulgados para os visitantes da feira, entre 12 e 16 de setembro. Há ainda pequenos eventos no prédio, que reúnem artistas e produtores culturais. A Bolha Editora, por exemplo, vinha realizando encontros aos sábados no terraço do edifício, com apresentações de música e divulgação de livros de arte.

Segundo Barrão, o advogado da Syn-Empreendimentos Imobiliários, George El- Khouri, teria dito no encontro com os artistas que a ideia da incorporadora é reformar o edifício e criar ali um centro cultural, do qual os artistas poderiam participar, pagando aluguéis reajustados. El-Khouri não retornou as ligações da reportagem do GLOBO até o fechamento desta edição.

— Fico preocupado porque em todos os bairros que foram transformados, como é o caso do que ocorre agora nessa região da Bhering, os artistas foram os primeiros a ser expulsos, junto com a comunidade local carente — diz Barrão.

O artista Cadu, que também tem ateliê na fábrica, se preocupa com a especulação imobiliária, já que a área é o "filé da cidade no momento":

— É um bairro extremamente sujeito à especulação. E a memória das pessoas é curta. Daqui a pouco, abrem um shopping ali, com uma praça de alimentação e, pronto, passou. Aquele centro espontâneo de arte e cultura será esquecido.